Toda minha ascendência é nordestina. Meus pais são paraibanos, assim como quase todos antes de mim. O sertanejo é, antes de tudo, um forte, e apesar de hoje desfrutar de uma vida confortável, nunca esquecerei os que foram deixados para trás nas estradas depois de cair de inanição. Mesmo que eu não saiba seus nomes, mesmo que nunca tenha visto seus rostos, carrego comigo toda a história do povo pobre nordestino e esta história é repleta de tristeza e injustiças sociais.
Vítimas da seca. Crianças e adultos jazem ao lado da linha férrea que levava para o campo de concentração de Senador Pompeu (fonte) |
Já chorei ao ler relatos das secas nos jornais de décadas passadas, de uma época em que a fotografia era um raro recurso e cronistas enchiam seus textos com detalhes sobre o sofrimento de pessoas que aos farrapos, trajando nada além de trapos, abandonavam suas terras em direção a capital, incomodando com seu cheiro e sua presença as famílias de coronéis e políticos que gozavam de fartura em suas mesas. Foram criados campos de concentração para que essa gente morresse longo dos olhos de seus senhores.
Notícia sobre o Campo de Concentração dos Flagelados, publicada no Jornal O POVO, em 16/04/1932 (fonte) |
Ter cintura larga era sinônimo de abundância ostentada apenas pelos coronéis. Hoje, com acesso sem restrição aos alimentos, toda mãe nordestina só fica feliz quando seus filhos terminam de comer a meia tonelada de almoço que ela prepara. Ter comida a vontade no prato é algo novo aos meus, coisa de duas gerações.
Recentemente, a partir da década de 90, milhões de pessoas chegaram à classe média e com isso puderam abastecer suas geladeiras de um jeito que nunca antes foi possível. Já nasci nesta condição social, início dos 80. Além da mesa farta, poder comer carne todos os dias é um dos símbolos mais fortes desta acensão, desta vitória que, infelizmente, muitos não puderam compartilhar. Acredito fazer parte da primeira geração da minha família a contar com proteína animal diariamente nas refeições.
Para esta mudança, o Brasil precisou se adaptar e utilizar novas formas de produção alimentar. Prover carne para todo mundo não é uma atividade fácil e requer muito espaço. Sem me alongar, a Amazônia está sendo derrubada e povos tradicionais estão sendo assassinados para abertura de pastos e plantação da soja utilizada, entre outras coisas, para produção de ração. Sem falar na poluição atmosférica, do solo e da água.
São fartas as notícias do massacre que está dizimando os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul a mando do agronegócio. Na minha opinião, a pecuária consegue ser pior que o tráfico de drogas que coloca um fuzil na mão de uma criança. Diversos países estão apresentando bons resultados legalizando alguns entorpecentes, o Uruguai reduziu para zero o número de mortos em consequência do tráfico, mas ainda não paramos para enfrentar o problema que é o gado e a soja.
Diante desta realidade, abri mão do meu privilégio de comer carne. A criação de animais para consumo humano não é uma atividade sustentável em nenhum nível. Para conseguir um quilo de carne de pato criado no quintal de casa são utilizados 50 quilos de grãos.
Acredito que a grande questão é: como conciliar o legítimo direito das pessoas que conseguiram acender a churrasqueira pela primeira vez agora com um meio ambiente equilibrado? Não há resposta. É muita crueldade tentar tirar o bife do garfo daqueles que sempre estiveram em situação de insegurança alimentar.
Estou aprendendo a viver deste novo jeito e é um aprendizado que envolve muitas pessoas além de mim. Minha companheira, meus amigos e minha família também estão entendendo a forma de lidar com esse novo eu. Não sei como vai ser, mas vou tentando.
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